Mostrando postagens com marcador Carlos Heitor Cony. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Carlos Heitor Cony. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Memórias da redação: Há 50 anos, “Salvador Allende, presente!” • Por Roberto Muggiati

 



Era terça-feira, 11 de setembro de 1973, e a Manchete estava fechada quando soubemos do golpe no Chile. A magnitude do fato exigia um registro imediato. Com grande parte da revista já impressa, optamos por um encarte de oito páginas. A relativa proximidade geográfica permitiu-nos obter material fotográfico dos trágicos acontecimentos que culminaram com o suicídio de Salvador Allende e o massacre de seus apoiadores, acuados no Palácio de la Moneda e bombardeados pela artilharia, tanques do exército e aviação, comandados pelo general Augusto Pinochet. Massacradas também foram as forças da resistência civil, formadas por bravos, mas mal equipados grupos estudantis e operários. Revivi agora aquele momento histórico vendo pela primeira vez o filme de Helvio Soto Chove em Santiago (1975), que descreve as últimas horas do governo Allende.

Mesmo sendo uma semanal ilustrada de assuntos gerais, com forte ênfase no mundo do entretenimento, a Manchete sempre manteve um compromisso com a cobertura da atualidade. Não foram poucos, nas décadas seguintes, os acontecimentos que exigiram a reabertura da revista às terças-feiras. Lembro o assassinato do Rei Faisal da Arábia Saudita por seu sobrinho em 25 de março de 1975. 


Em 1974, quando o presidente norte-americano Richard Nixon renunciou na onda do Escândalo de Watergate, na sexta-feira, 9 de agosto de 1974, fizemos uma edição extra em preto-e-branco que chegou às bancas em menos de 24 horas.


O assassinato de John Lennon em 8 de dezembro de 1980 – nas primeiras horas da terça-feira 9 de dezembro, horário de Brasília – nos levou à produção de um encarte na edição de quarta-feira e a atualização com uma chamada enorme ocupando quase metade da capa de gala de Pelé, já praticamente impressa.


Na segunda-feira, 30 de março de 1981, o presidente Ronald Reagan sofreu um atentado a bala em Washington. Tivemos de esperar a chegada das fotos pelo malote de Nova York para paginar a matéria de abertura e a capa na manhã de terça-feira. Três coisas a destacar:

• Semanas depois, em 13 de maio, na Praça de São Pedro, no dia de Nossa Senhora de Fátima, o Papa João Paulo II sofria um atentado.

• O atentado contra Reagan foi cercado de conotações cinéfilas, ele próprio tendo sido um galã de Hollywood. A cerimônia de premiação do Oscar, marcada para aquela noite, foi cancelada. O agressor, um adolescente perturbado, atirou contra o Presidente para chamar a atenção da atriz Jodie Foster, que despertou nele uma paixão obsessiva ao vê-la no filme Taxi Driver, cujo tema era justamente um atentado político.

•  O autor das melhores fotos do atentado contra Reagan foi o brasileiro Sebastião Salgado, da agência Magnum, que vinha na cola do presidente para registrar seus primeiros 100 dias de governo. Salgado, com o dinheiro da venda das fotos, conseguiu se dedicar ao seu projeto de documentação da natureza e da ocupação humana voltado para a preservação do planeta.


Numa terça-feira especial de março de 1985, Carlos Heitor Cony, com sua vocação de portador de más notícias, me ligou de Brasília no meio da noite: “Muggiati, como editor da Manchete você precisa saber: o Tancredo não toma posse amanhã. ” Dito e feito. A cobertura da doença do primeiro presidente civil pós-ditadura se estenderia por mais de cinco semanas de trabalho desgastante para os jornalistas, principalmente os da imprensa diária. Com Gervásio Baptista como fotógrafo oficial da presidência – escolha de Tancredo confirmada por Sarney – tivemos a primeira foto exclusiva do presidente após sua hospitalização: com dona Risoleta e o corpo médico em Brasília. Foi capa, com a chamada triunfalista TANCREDO: A VOLTA POR CIMA. Às seis da manhã da terça-feira toca meu telefone de cabeceira. O chefe de reportagem, Cesarion Praxedes, esbaforido, me avisava que Tancredo acabara de ser transferido para o InCor, em São Paulo. Com as fotos da remoção do Presidente atualizamos a matéria de abertura. A foto da capa ficou ainda mais atual, com uma nova chamada: TANCREDO: O DRAMA DO PRESIDENTE. Seria a última foto de Tancredo Neves vivo.

Outra terça-feira 11 de setembro ocuparia os noticiários, a de 2001, com a explosão das Torres Gêmeas em Nova York. Ficamos fora dessa, os jornalistas da Manchete. As Torres Gêmeas do Russell já haviam caído, em 1º de agosto de 2000. Significativamente, uma terça-feira...

PS • O 11 de Setembro do Bem 

Foto da sessão de gravaçã de Love me do, em 11 de setembro de 1962 na capa da partitura.

Aconteceu no ano de 1962 em Londres, nos estúdios de Abbey Road, quando os Beatles gravaram o seu primeiro single: Love Me Do/P.S. I Love You. Foi uma tarde tumultuada. 

O produtor da EMI, George Martin, considerava Ringo Starr um baterista de bailes e preferiu se garantir com um escolado baterista de estúdio, Andy White. Mas, pressionado por John, Paul e George, Martin resolveu dar uma chance a Ringo. Usou alternadamente os dois bateristas para escolher a melhor take. Só a 17ª tentativa, com Ringo à bateria, agradou seus exigentes padrões. Àquela altura John já estava com os lábios anestesiados de tanto soprar o riff na gaita-de-boca. Finalmente, depois de tanta luta, os rapazes de Liverpool conseguiam gravar seu primeiro disco. Coincidência histórica: 11 de setembro de 1962 também caiu numa terça-feira.



quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Quase memórias da falência da Bloch Editores (há 23 anos)

Foto Gil Pinheiro 

por José Esmeraldo Gonçalves

2 de agosto de 2000. Há 23 anos, em uma quarta-feira como hoje, os funcionários da Bloch Editores foram obrigados a abandonar às pressas a sede da empresa na Glória. Um oficial de justiça concedeu-lhes apenas alguns minutos para que reunissem seus objetos pessoais e, literalmente, fossem para a rua. No caso, a do Russell. 

A aglomeração no pequeno largo diante do imponente conjunto de três edifícios assinado por Oscar Niemeyer chamava atenção de quem passava de carro. Formou-se um pequeno engarrafamento, alguns indagavam se havia um incêndio. 

Não. Ninguém gritou fogo, mas a notícia da autofalência da Bloch queimava centenas de carreiras e lançava os mais idosos no desemprego. Aos mais jovens restava enfrentar o sempre difícil mercado de trabalho. No caso de jornalistas, fotógrafos, pessoal do administrativo e gráficos surgia um novo obstáculo: a mídia impressa entrava em grave crise que se agravaria ao longo da primeira década do novo milênio. O meio digital não ofereceria um número de vagas que compensasse a perda de cerca de quatro mil postos em todo o mercado de jornais e revistas do Brasil. 

A Bloch Editores agonizava desde meados dos anos 1990, abalada pela grave crise financeira e adminstrativa da Rede Manchete. Afinal, depois de várias vendas frustradas e desfeitas por falta de pagamento dos compradores, a TV foi vendida em 1999 ao grupo empresarial que fundou a RedeTV (que, na transação, atendia pelo nome fantasia de TV Ômega). 

Um reposicionamento da Revista Manchete nos últimos anos daquela década deu esperança de novo vigor ao braço editorial das revistas impressas da Bloch. Mas era tarde. Imposta pela internet, a acelerada mudança do mercado de revistas já se anuncava em 2000 e em menos de dez anos decretaria o fim de centenas de publicações impressas no Brasil e no mundo. 

A Bloch não resistiu e pediu falência.

Carlos Heitor Cony testemunhou a queda do raio que partiu de vez o futuro da empresa. Ele confessou que só sete anos depois conseguiu descrever um pouco do que sentiu ao ser enxotado naquele fatídico agosto. Seu relato foi publicado na Folha de São Paulo em 2007. Segue-se um pequeno trecho do texto do Cony, que faleceu em 2018. 

- Penso que remeti as impressões todas para a caverna mais funda da memória, mais cedo ou mais tarde conseguirei articular alguma coisa expressando meu espanto, minha tristeza. A decepção de ver um mundo colorido, alegre e despreocupado, depois de uma ruína gradual e dolorosa que já durava dois anos, fechar-se como um túmulo que sepulta fantasmas, alguns mortos (Adolpho Bloch, Justino Martins, Magalhães Jr e outros ainda vivos, nós todos). Sinto em cima de mim o gosto de terra e o cheiro de flores apodrecendo".

Em 2008, como um dos autores da coletânea "Aconteceu na Manchete - as histórias que ninguém contou" (Desiderata), lançado por um grupo de ex-funcionários da Bloch, Cony voltou ao assunto e, entreo outras revelações destacou;: 

- Foi na Manchete que fiz e conservei alguns dos amigos mais queridos. Por ocasião da falência do grupo, eu ocupava o antigo escritório de JK no décimo andar do 804, dava apenas assistência não mais às revistas, mas à diretoria, sofri com Adolpho o trauma das tentativas de venda da TV a outros grupos".

Cony certamente não imaginou que aquele trágico 2 de agosto era apenas o primeiro e sofrido capítulo de um drama que se arrasta até hoje quando a Massa Falida da Bloch Editores completa inacreditáveis 23 anos. 

Não há justiça plena enquanto uma instituição que deveria privilegiar os trabalhadores consome partrimônio, tempo e esperanças ao não restituir todos os legítimos direitos às vítimas da implosão de uma corporação. Massas falidas não pode se eternizar enquanto vidas passam. 

Registre-se que uma parcela majoritária de credores trabalhistas da Bloch recebeu seus valores chamados principais. A estes - seriam quase três mil ex-funcionários da Bloch Editores  e Gráficos Bloch -, a Massa Falida pagou depois três parcelas de juros e correção monetária, mas há quase dez anos interrompeu essa recomposição devida. Por outro lado, ainda há credores trabalhistas habilitados que não receberam seus valores principais. 

A Massa Falida da Bloch Editores foi constituída em 2000. Apesar disso, o atual administrador judicial cita uma lei de 2005 segundo a qual valores referentes a juros só poderão ser pagos após a quitação das dívidas da extinta Bloch com todos os seus credores, trabalhalistas, financeiros, comerciais, institucionais etc. Então a lei retroage? Essa é a pergunta que muitos ex-funcionários fazem. Há outras indagações. No ano passado o síndico da Massa Falida da Bloch Editores informou a procuradores do Estado do Rio de Janeiro que "o ativo da massa falida foi praticamente liquidado, encontrando-se o processo falimentar na fase de pagamento de credores para posterior encerramento". Isso indica que o caixa se esvaziará antes do pagamento dos valores históricos e de juros e correção monetária de todos os credores trabalhistas?

Um bem valioso que pertencia ao extinto Grupo Bloch era o grande prédio da sede em São Paulo. Tal patrimônio teria ido a leilão, mas, em primeira chamada,, em outubro do ano passado, não apareceram potenciais compradores. Não tenho informação se foi arrematado posteriormente. No caso, o valor arrecadado seria, segundo dizem credores trabalhistas, dividido entre as massas falidas da Bloch e da TV Manchete.  Outro item de valor são as obras de arte restantes do acervo da editora. Aparentemente continuam aguardando uma data para leilão. Enquanto isso, custam à MFBloch o aluguel de salas para guarda, seguro etc.

Trabalhei muito anos com Carlos Heitor Cony na Fatos & Fotos, na Fatos e na Manchete, mas não estive no fatídico dia do despejo do prédio da Rua do Russell, que frequentei por longos 17 anos. Saí antes do desfecho da Bloch, não tive motivos para me habilitar a qualquer indenização. Em 1996, o editor e fotógrafo Sergio Zalis, com que eu havia trabalhado na revista Fatos, me convidou para participar da equipe da Caras, no Rio. Deixei a Manchete e me mudei para a Torre do Rio Sul, onde ficava a redação carioca da então recem-lançada revista sediada em São Paulo. Foi uma ótima expriência que durou oito anos. A Caras era fruto de uma parceria da Editora Perfil, argentina, com a Abril. Em 2004, fui demitido após uma discussão com o diretor-geral da Caras. Para minha supresa, no dia seguinte, por indicação de Patricia Hargreaves e Vanessa Cabral, ambas ex-Caras, Edson Rossi, que ao lado de Claudia Giudice, também ex-Caras, planejava o reposicionamento editorial da Contigo, publicação da Editora Abri, me convidou para integrar a sua equipe. Topei e foram, novamente, bons anos, até 2014, quando meu tempo de trabalho fixo em redações se esgotou em parte pela crise, em parte pela minha idade - era veterano demais para os novos tempos.  

Em todos eesses anos distante da Manchete nunca deixei de acompanhar a luta sem fim dos antigos colegas pelos seus direitos. De certa forma, eu estava naquela dramática aglomeração na Rua do Russell. Por fim, lamento que esse post não seja otimista, tanto que vale voltar ao Cony e a uma das frases que ele gostava de repetir.   

- Insisto em ser pessimista por antecipação e cálculo. O que me sobra é lucro''.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Memórias da redação: Adolpho Bloch esnobou Collor e paparicou Lula • Por Roberto Muggiati


1989: à véspera do segundo turno - Adolpho Bloch, Luís Inácio Lula da Silva,
Osias Wurman, Carlos Heitor Cony, Roberto Muggiati e Jaco Bittar


Antes do segundo turno - Pedro Collor, Mauro Costa, Oscar Bloch Sigelmann,
Fernando Collor de Mello, Pedro Jack Kapeller, Arnaldo Niskier,
Daniel Tourinho e Roberto Muggiati. Fotos Acervo Pessoal


Era o segundo turno das eleições de 1989, o duelo no Sarney Curral, opondo o Caçador de Marajás e o Sapo Barbudo. Fernando Collor de Mello jantou na Bloch numa segunda-feira depois do fechamento da revista. Adolpho Bloch inventou uma desculpa e não deu as caras, Jaquito e Oscar recepcionaram o futuro presidente. A Bloch teve uma mãozinha nessa história. Collor concorreu por uma legenda menor, o Partido da Reconstrução Nacional (PRN), antes Partido da Juventude, fundado por Daniel Tourinho, que trabalhou na área de recursos humanos da Bloch Editores entre 1974 e 1985. 

Num gesto impulsivo, Adolpho Bloch convidou Lula para almoçar na sede da Manchete no Rio na véspera do segundo turno, sábado, 16 de dezembro. Lula e comitiva vieram naquela manhã de São Paulo num jatinho. Adolpho recebeu calorosamente o líder sindicalista e o levou a visitar o escritório do ex-Presidente Juscelino Kubitschek no prédio do Russell, que havia se tornado uma peça de museu depois da morte de JK em 1976. Lembro de um episódio engraçado durante o almoço. A certa altura, Adolpho desconcertou Lula com uma pergunta a queima roupa:

– E o senhor gostaria de ter um mais moço que o senhor?

O líder petista titubeou:

– Não entendi, sêo Adolpho! Ter um o quê? Mais moço?...

– Um sogro, porrraa!

Ele não se conformava de ter um sogro quatro anos mais moço: o general Abraham Ramiro Bentes, pai de sua segunda mulher, Anna Bentes.

Um trunfo que Collor usou em sua propaganda no segundo turno foi apresentar na TV uma ex-namorada de Lula, Míriam Cordeiro, com a qual ele teve uma filha, Lurian. A ex acusou Lula de “racista” e de ter exigido que ela abortasse a filha. Collor também espalhou que, se eleito, Lula confiscaria a poupança, medida que ele próprio, Collor, adotou assim que foi empossado. Houve ainda o sequestro “cenográfico” do empresário Abílio Diniz, libertado no domingo das eleições, com os sequestradores apresentados pela polícia vestindo camisetas do PT. Ainda assim, Lula não se saiu tão mal e reduziu a vantagem de Collor do primeiro turno (66,05% contra 33,95%) para o segundo (53,03% contra 46,97%).

Vamos voltar ao “adolphês”, o linguajar críptico (e típico) do empresário que só os mais próximos conseguiam captar (Cony era mestre nisso). Por ter morado em Paris e em Londres, Adolpho sempre me requisitava como interprete para seus encontros internacionais. Mas muitas vezes me levava a tiracolo mesmo quando se reunia com brasileiros. Não esqueço seu primeiro encontro em 1979 – à cabeceira da longa mesa de jantar do prédio do 804 no Russell – com Leonel Brizola, que acabara de voltar do exílio. 

Com os olhos brilhando, Brizola abriu o diálogo:

- Bloch, o socialismo é uma coisa tão bonita!

Adolpho desviou o rosto para o lado, naquele seu cacoete judaico-ucraniano de cuspir no chão. O Engenheiro não notou – ou fingiu que não notou. 

Eleito governador do Rio de Janeiro em 1982 – nas primeiras eleições livres e diretas para governador desde 1965 – Brizola seria uma mãe para a Bloch. Não só abriu crédito ilimitado para a empresa, como, no primeiro Carnaval do Sambódromo, em 1984 – também o primeiro Carnaval da Rede Manchete – concedeu direitos exclusivos de transmissão a Adolpho, chutando para escanteio a TV de Roberto Marinho. 

Dá para imaginar as benesses que cairiam sobre a Bloch caso Brizola fosse eleito presidente, mas ele chegou em terceiro, depois de Collor e Lula. Mas a Manchete sempre soube cativar o poder. Colocou Leopoldo Collor de Mello, irmão mais velho do Presidente, na chefia da Rede Manchete em São Paulo. Na presidência de Fernando Henrique Cardoso, o Primeiro Filho, Paulo Henrique Cardoso, ganhou um importante cargo na Rede Manchete, com direito a um luxuoso escritório privado.

Lula não chegou a pegar a Manchete – ou vice-versa – mas se a Bloch ainda sobrevivesse em 2002 com toda a certeza seria tratada a pão de ló pelo presidente petista, em reconhecimento ao apoio que recebeu de Adolpho – na contramão do poder – no segundo turno de 1989.


sábado, 20 de agosto de 2022

Cony e a Montanha dos Sete Patamares • Por Roberto Muggiati

O lançamento do romance póstumo de Carlos Heitor Cony A Paixão segundo Mateus (Nova Fronteira) me levou a revisitar meus fantasmas religiosos da adolescência. Cony costumava dizer: “Sou ateu com nostalgia de uma fé que nunca tive”. Seminarista até os 19 anos, largou a batina antes de ser ordenado padre. Teve, portanto, uma convivência com o claustro, ao contrário de mim: abandonei a religião depois da Primeira Comunhão, traumatizado com aquela experiência atroz, na paróquia de Santa Teresinha em Curitiba. Primeiro, a confissão: você era obrigado a fornecer à entidade oculta por trás da treliça um cartel mínimo de pecados. Que noção de pecado pode ter uma criança de oito anos? Um menino mais esperto se forrou de balas Zequinha e bolas de gude “traficando” pecados para os menos imaginativos. Depois, o clima de pavor que cercava a ingestão da hóstia sagrada (“Muito cuidado para não morder o corpo do Senhorrrr!”...) Terminada a cerimônia sequer fui para o desjejum, apesar do convidativo Toddy com biscoitos. Saí atordoado para a rua, para o sol da liberdade, e passei muitos anos sem botar os pés numa igreja.


Foto Thomas Merton Center
Aos dezesseis anos, quando comecei a ler meus primeiros livros em inglês, caiu em minhas mãos The Seven Storey Mountain,  em que Thomas Merton (1915-68), um enfant du siècle, filho de neozelandês e norte-americana nascido nos Pirineus franceses, relata sua busca inquieta por um sentido da vida nos agitados anos 1930. Resume o escritor Clifton Fadiman: “De uma próspera família da classe média, Merton passou a infância na Inglaterra, França e nos Estados Unidos. Aluno da Universidade de Columbia, era popular e bem-sucedido. Interessado por literatura e arte moderna, entusiasta de sessões de jazz, viu-se de repente tomado por uma inquietante preocupação com os problemas sociais do seu tempo e com sua salvação pessoal. Isso o levaria a abandonar totalmente a excitação e confusão do mundo.”

Em dezembro de 1941, ele se tornou monge trapista na Abadia de Nossa Senhora de Gethsemani, no Kentucky, da ordem cisterciense, conhecida pelo voto do silêncio. Ao longo de três décadas, Merton escreveu mais de setenta livros, a maioria sobre espiritualidade. Poeta, ativista social e estudioso de religiões comparadas, defensor do pacifismo e do ecumenismo, é considerado o construtor da ponte unindo as doutrinas do Ocidente e do Oriente.

Foi em Bancoc, na Tailândia, durante uma conferência ecumênica, que Merton morreu, em 10 de dezembro de 1968, aos 53 anos. Sua morte foi atribuída ao curto circuito de um ventilador, encontrado sobre seu corpo. Como não houve autópsia, ficou sem explicação o ferimento na base do crânio, com forte sangramento. Ironicamente, o pacifista Merton teve seu corpo transportado para os Estados Unidos num avião militar que voltava do Vietnã. 

A década foi marcada por uma série de assassinatos políticos: o líder revolucionário do Congo Patrice Lumumba (61), John Kennedy (63) Malcolm X (65), o líder revolucionário marroquino Ben Barka (65), Carlos Marighela (69). O Secretário Geral da ONU, Dag Hammarskjöld, morreu em 1961 em Zâmbia num desastre aéreo – seu avião teria sido abatido a tiros. Em 1968, foram assassinados Robert Kennedy e Martin Luther King; o pintor Andy Warhol quase morreu depois de levar três tiros de uma feminista radical. A Teoria da Conspiração acabaria encampando a “eletrocussão acidental” de Thomas Merton entre os assassinatos políticos de 1968 no livro de Hugh Turley e David Martin O martírio de Thomas Merton: uma investigação (2018). 


Voltando ao livro que abalou meus alicerces na adolescência. A capa é notável, pintada por James Sante Avati (1912-2005), o “Rembrandt das capas de paperbacks”, que também assinou a famosa capa da edição de bolso de O apanhador no campo de centeio. Com um monge embuçado em primeiro plano, temos, num estilo realista bruto, uma visão social panorâmica da América do entreguerras, uma vintena de pessoas espalhadas por uma paisagem caótica de pedras e sombras.

O texto da quarta capa, naquela linguagem vívida e atraente dos paperbacks, me atraiu irresistivelmente à leitura:

O Coração de um Homem

Cândida, reveladora e extremamente honesta, esta é a impressionante biografia de um jovem bem preparado que levava uma vida emocionante e sofisticada até os 26 anos de idade, quando ingressou num mosteiro trapista. Sua história se desloca de Paris ao Harlem, de células comunistas a uma cela de monge, de sessões de jazz até o silêncio da Abadia de Nossa Senhora de Gethsemani no Kentucky, de James Joyce a Duke Ellington. Sua revelação sensível e exuberante de uma profunda experiência espiritual fez dele um dos livros mais vendidos do nosso tempo.

“É para um livro destes que os homens se voltarão daqui a cem anos a fim de saber o que se passava no coração dos homens neste século cruel.”  Clare Booth Luce, jornalista, fundadora da revista Time. 

O mundo me levou para outros caminhos e a tentação da vida monástica ficou para trás. Só recentemente fiquei sabendo que existe um mosteiro trapista no Brasil. No pós-guerra, cinco monges da Abadia de Genesee, no estado de Nova York, partiram para fundar um mosteiro em nosso país. A comunidade começou no município da Lapa, Paraná, mudando-se em 1983 definitivamente para a cidade de Campo do Tenente. Veja o site oficial, 

AQUI http://www.mosteirotrapista.org.br/

Thomas Merton teve uma relação especial com o Brasil. Sua biografia no site da Wikipedia reserva um capítulo especial, que transcrevo aqui:

 No Brasil Thomas Merton tinha vários amigos e publicou um grande número de livros. Muitas são as pessoas, leigas ou religiosas, que consideram as leituras de seus livros marcos importantes das suas vidas espirituais. Foram lançados mais de 40 livros em português, graças ao envolvimento de intelectuais – como Alceu Amoroso Lima – e de monjas e monges beneditinos – como Dom Basílio Penido, Dom Timóteo Amoroso Anastácio, Dom Estêvão Bettencourt e, principalmente, da irmã Maria Emmanuel de Souza e Silva.

A história sobre o início de uma relação de trabalho e de uma amizade é contada no livro Thomas Merton: o homem que aprendeu a ser feliz, pela Ir. Maria Emmanuel. Ao longo de 13 anos trocaram mais de uma centena de cartas, cartões postais, "santinhos" e livros. Parte das cartas de Merton enviadas à Ir. Maria Emmanuel estão registradas no livro The Hidden Ground of Love: Letters on Religious Experience and Social Concerns (Letters, I).

Merton se correspondeu com outros brasileiros como Alceu Amoroso Lima, Dom Hélder Câmara, abades beneditinos, religiosas e religiosos e simples leitores, ao longo de sua vida. Ele também se interessava por vários autores brasileiros - em especial pelos poetas Manuel Bandeira e Jorge de Lima.

O continuado interesse por Merton, sua vida e suas ideias, levou à fundação, em 10 de dezembro de 1996, da Sociedade dos Amigos Fraternos de Thomas Merton - SAFTM.

Após ter cessado por longos anos a publicação de suas obras no Brasil, existindo apenas dois títulos em 1996, foram reeditados em 1999 os livros A Montanha dos Sete Patamares, Novas Sementes de Contemplação e Ascensão para a Verdade logo seguidos pela publicação de outros títulos nos anos subsequentes. Hoje já são 16 os títulos disponíveis, tendo se estabelecido um novo interesse em dar continuidade à publicação de antigas e novas obras. Além desses existem quatro livros sobre Thomas Merton. Os quase 30 outros títulos esgotados podem ser encontrados em sebos de todo o país.

Bem mais recentemente, fiquei sabendo que outro redator de Manchete, Irineu Guimarães – um défroqué (sem batina) que levou a experiência do claustro muito mais a fundo do que Cony – também se voltou para os trapistas. Foi ele quem traduziu o livro francês Les Mystères de la Trappe, edição bilíngue em latim e português, uma obra-prima da paciência, fruto do seu conhecimento do latim, publicada no Brasil em 1997 com o título Os Cistercienses. 

Veja aqui a vida no mosteiro trapista de Campo do Tenente, no Paraná, num documentário da TV Estado.

https://www.youtube.com/watch?v=8bhFoienNss


quinta-feira, 16 de junho de 2022

Um texto para Adenor Leonardo, mais conhecido como Tite, ler no avião rumo ao Catar - Há 40 anos o Brasil perdia a Copa da Espanha. Carlos Heitor Cony interpretou em crônica para a Manchete a Tragédia de Sarrià. A seleção perdeu mas é até hoje romantizada embora tivesse seus defeitos...

 

A alegria de Paolo Rossi contrasta com o drama na cara do goleiro Waldir Peres. A foto sintetiza a tragédia de Sarrià, em Barcelona, na  Copa de 1982, Foto Manchete







Depois da derrota na Copa da Espanha, a seleção de 1982 foi se tornando cada vez "épica"
ao longo dos anos. Era um timaço, mas abusou do direito de errar. Tinha qualidades individuais e falhou no jogo coletivo. Cony escreveu essa análise sobre a Tragédia de Sarrià (publicada na Manchete número 1758) poucos minutos depois do apito final do jogo que o Brasil perdeu por 3 x2 para a Itália no dia 5 de julho. O tempo passou, o futebol mudou, mas Tite
bem que devia ler o texto acima
 

sábado, 1 de agosto de 2020

As folhas mortas da edição da Manchete que não aconteceu: 20 anos, hoje

Os prints da edição da Manchete que jamais foi impressa. 

Matéria de Rubens Barrichello. 

Uma das reportagens da edição.
É quase ilegível, mas o print é datado. 1° de agosto de 2000. 20 anos hoje. 

por José Esmeraldo Gonçalves

Em 2007, Carlos Heitor Cony recordou na Folha de São Paulo o último dia da Manchete. "Na minha sala, antiga sala de JK e do dr. Albert Sabin, que a ocuparam durante anos, havia seguranças, o oficial de justiça me esperando. Um lampião mal dava para iluminar o hall de entrada, impossível retirar minhas coisas pessoais".

Naquele 1° de agosto de 2000, a Manchete vivia a sua versão jornalística da Operação Dínamo, o nome que Churchill deu à caótica retirada de Dunquerque.

Crônica do Cony na Manchete que não aconteceu...

Com os elevadores desligados, o oficial de justiça se dispôs a iluminar o caminho do Cony nas  escadas até o térreo. Duvido que, naquele momento, o amigo lembrasse da crônica que entregara à redação no dia anterior. Cony publicou dezenas de livros e milhares de crônicas que viram a luz das livrarias e das bancas de jornais e revistas, mas aquela última, escrita para a Manchete, na penumbra do fim, estava destinada a ficar sem destino.

J.A. Barros, o diretor de Arte que paginou aquela edição, a chamou, em post recente neste blog, de "Manchete fantasma". As páginas foram montadas e finalizadas, mas jamais impressas. Barros já especulou que a Manchete que não existiu repousa em paz no HD de um computador qualquer lacrado naquele dia e leiloado depois como um item do que se tornaria a sucata lacrada pela justiça.

Perdeu-se por aí.

Pois aquela edição, a que não existiu, se recusou a morrer: deixou os prints que aqui, 20 anos depois, são exumados.

Por algum motivo, Cony, que normalmente fazia na revista crônica dos fatos, entregou à redação, na véspera da falência, um conto sobre um sujeito que ouvia As Time Goes By em uma noite de solidão.

"No matter what the future brings/As time goes by", diz um dos versos da canção de Herman Hupfeld.

Na língua de Camões, ou de Jesus, o "ex-míster" do Flamengo, "não importa o que o futuro traga com o passar do tempo".

domingo, 26 de julho de 2020

Carlos Heitor Cony escreveu... Cadaverbrás, a nova concessionária federal


Uma crônica de Carlos Heitor Cony escrita para o  Correio da Manhã nos anos 1960 circula na internet. As redes sociais, com razão, consideram-na atualíssima. Cony sequer imaginava que o Brasil, pouco mais de dois anos após seu falecimento, viveria essa tragédia política, econômica, moral, social e... mortal.

A Covid-19 atingiu o mundo inteiro, mas só aqui foi recebida pelo governo federal, a quem cabia coordenar o combate ao vírus, com cinismo, desprezo e crueldade. Somos o único país onde as autoridades maiores fizeram até campanha para combater não o vírus mas o isolamento social recomendado. O único país onde sobrou até verba no Ministério da Saúde, tão inoperante é. O único país que não deverá ter uma segunda onda da doença simplesmente porque ameaça ficar em uma interminável primeira onda. O único país que ao quinto mês da chegada no vírus ainda está em curva ascendente. O único país que criou um jargão idiotae irreal para as estatísticas de contaminação e mortes: o platô. E alguns estados até comemoram isso. Platô é o c******, é a estabilização no caos. Festejá-lo, em vez de buscar a curva descendente, é a incompetência confessada.

Nesse ritmo, o Brasil caminha acelerado para superar os Estados Unidos em todas as modalidades de estatísticas da Covid-19.

O Rio de Janeiro é um triste exemplo. A morte vai à praia. Bastou ensaiar o tal platô para a cidade entrar em liberou geral. Os resultado já aparece: a turma alegre que desfila sem máscaras conseguiu o que queria: o aumento do número de mortes nos grupos de risco.

O governo federal já pode criar a concessionária sugerida pelo Cony: a Cadaverbrás.

Não se pode mais alegar que Bolsonaro e Paulo Guedes não criam empregos. Há vagas para coveiros, marceneiros, motoristas de rabecão...

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Cony foi cassado por Wilson Witzel. Governador muda nome de escola que homenageava o jornalista e escritor

O governador Wilson Witzel cassou Carlos Heitor Cony, Rachel de Queiroz, Zilda Arns e Luiz Melodia.

Explica-se os citados eram nomes de escolas estaduais. Com uma canetada, Witzel rebatizou-as com nomes de policiais e bombeiros militares. Todas essas escolas serão transformadas em "escolas cívico-militares", espécie de "mini-quartéis" educacionais que se espalham pelo país atualmente.

A informação está no jornal Extra, que registra como fonte o Diário Oficial de segunda-feira (27).

Provavelmente os escritores, o compositor e a médica sanitarista anteriormente homenageados (com exceção, talvez, de Rachel de Queiroz, que era ligada ao ditador Castelo Branco) agradeceriam a Witzel por não associar seus nomes ao projeto militarista.

O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony, ex-Manchete, Fatos & Fotos e EleEla, foi preso em duas ocasiões, durante a ditadura, sob os governos de Castelo Branco e Costa e Silva

domingo, 8 de setembro de 2019

Já pensou nessa pergunta essencial? Quando o Brasil começou a não dar certo? Essa capa da Manchete pode ser uma pista


por O.V.Pochê

Os institutos de pesquisa jamais fizeram a pergunta essencial: quando o Brasil começou a não dar certo?

Quando Cabral desembarcou? Quando a família imperial chegou ao Rio de Janeiro? Quando Deodoro proclamou a República? Quando Getúlio saiu da vida para entrar na história? Quando Jânio foi eleito? Quando militares fizeram a "revolução" de 64? Quando inventaram o axé?  Ou quando a música sertaneja se tornou a trilha sonora do país que já foi da bossa nova? Quando o "bispo" Macedo escreveu sua biografia? A eleição de Bolsonaro? Essa não ajuda, é mais um complicador na escolha.

Difícil responder à pergunta. .

Melhor ficar com uma capa representativa da Manchete, em 1992: Chico Anysio e Zélia Cardoso de Mello.

Essa capa e esse encontro sentimental tão inesperado de figuras nacionais deve significar alguma coisa. O humorista e a ministra que entrou para a posteridade ao confiscar a poupança de milhões de brasileiros.

Carlos Heitor Cony contava um caso que cabe nesse post. Nos anos 60, intelectuais se reuniam em um casarão da rua das Palmeiras, em Botafogo, para discutir a "conjuntura". O Brasil estava no escuro e não havia qualquer indicação luminosa da porta de saída. O debate lançava todo tipo de ideia para a possível solução do impasse institucional. Lá pela madrugada - contava Cony - levanta-se um idoso, voz trêmula, e faz sua única e última intervenção: "Temo que não dê certo".

Essa frase deveria estar na bandeira do Brasil no lugar do insípido "ordem e progresso".

Ou, pelo menos, na chamada de capa da Manchete.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Fotomemória da redação: Cony e o carrasco nazista Franz Wagner

Em 1978, Carlos Heitor Cony entrevistou com exclusividade para Manchete o carrasco nazista Franz Wagner. Oficial austríaco da SS, ele era o segundo em comando no campo de concentração Sobibor. Com o fim da guerra, fugiu para o Brasil onde viveu durante anos até localizado por Simon Wiesenthal, caçador de nazistas e sobrevivente do Holocausto, com o auxílio do jornalista brasileiro Mário Chimanovitch. Foi preso em maio de 1978.
Com o Brasil em plena ditadura, o STF negou sucessivos pedidos de extradição de Franz Wagner para Áustria, Polônia, Alemanha Ocidental e Israel.
Cony perguntou ao nazista se ele ainda fazia planos de vida. "Continuar vivendo. Isto é um plano. Sou um homem simples, me basto com pouco. Se tiver que ser preso, prefiro ficar na Alemanha. Foi por ela que lutei durante a guerra. Foi por ela que estou nessa situação, sendo acusado de besta humana, de fera nazista", disse ele, sem dar sinais de arrependimento.
Dois anos depois, o nazista foi encontrado morto em uma cela em São Paulo, com uma faca cravada no peito. Houve suspeita de assassinato, mas oficialmente foi declarado o suicídio.

sábado, 6 de abril de 2019

O Brasil – acreditem – já foi elegante: pelo menos nos cinco anos em que circulou a revista Senhor • Por Roberto Muggiati

Cenas cariocas clicadas pela Senhor: Didu Souza Campos, o apanhador no campo de polo. 
Fotos: Reproduções Senhor


A capital do país mudou para o Planalto, mas os cariocas não tomaram conhecimento. Quando surgiu a sigla da construtora de Brasília, Novacap, eles batizaram sua cidade de Belacap – e capital da beleza nacional o Rio continuou sendo, e também da inteligência.

A beleza se media nos badalados concursos de Miss no Maracanãzinho. Já o talento intelectual passava a desfilar na passarela de uma nova revista, lançada há exatos 60 anos, em março de 1959. Sediada no Rio, ela começou com o logotipo SR. – a palavra SENHOR inserida verticalmente na perna do R, e o lema “Uma revista para o senhor". Seu modelo era mais a intelectualizada Esquire do que a Playboy, que estourava nas bancas dos EUA com suas louraças peladas. Senhor tratava de elegância, etiqueta, política, economia e literatura (publicando contos e crônicas), mas não deixava de ter um olho arregalado também para mulher bonita, embora não exibisse corpos nus como alcatra num açougue, A praia da Senhor (o logotipo passou a aparecer por extenso a partir de abril de 1960) era o bom gosto e a sofisticação. Formulava um estilo de vida para o novo homem brasileiro que emergia do desenvolvimentismo de JK.

Walter e Elisinha Moreira Salles na SR.

O Melhor da SR revisitado em 2012

Eram tempos vibrantes: bossa nova, cinema novo, Sputnik, beats, cool jazz, revolução cubana – e, claro, revolução sexual. Todos esses temas encontravam espaço nas páginas da Senhor. O aquecimento do mercado garantia um respaldo publicitário para manter a Senhor nas bancas todo mês, com anúncios de moda, bebidas, cigarros, automóveis, eletrodomésticos, aparelhos de som, linhas aéreas. Foi uma bela aventura jornalística e cultural que durou até janeiro de 1964, um total de 59 edições, que tiveram sua memória resgatada em 2012 pela antologia facsimilar O Melhor da SR, ideia e coordenação de Maria Amélia Mello, organização de Ruy Castro (520 páginas, incluindo o suplemento SR. Uma senhora revista, Imprensa Oficial de São Paulo).

Revejo com satisfação e – por que não? – orgulho, minha assinatura no ensaio em página dupla “Os Moralistas Corruptores”, que a Senhor publicou em outubro de 1962, quando eu já estava em Londres, trabalhando no Serviço Brasileiro da BBC.

Rebolado segundo José Ramos Tinhorão

Senhor, agosto de 1961

Vinicius fala de poesia com Antonio Maria

Garrincha no ultimo número, janeiro de 1964. A foto de Alberto Ferreira foi Prêmio Esso. 
Meu trampolim para a Senhor foi o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que saía aos sábados. Graças a Nelson Coelho, minha “conexão zen" em São Paulo, publiquei meus primeiros artigos no sdjb. (Um deles, sobre Jack Kerouac, me valeu um cartão postal do “rei dos beats”, datilografado na mesma máquina em que ele escreveu On the Road, a única correspondência de Kerouac com um brasileiro.) Em 1960, numa promoção da Esso, fui indicado pela Gazeta do Povo de Curitiba para fazer um estágio no Diário Carioca. Aproveitando a estada no Rio, visitei a redação da Senhor em Copacabana, na Rua Santa Clara, 344. Passaria por lá de novo em 1962, entre uma bolsa de estudos em Paris e o emprego na BBC de Londres. Entreguei a Paulo Francis a tradução que eu tinha feito do conto de J.D. Salinger, “Um Dia Perfeito para Peixebanana”. Francis publicou o conto de Salinger em julho de 1962, mas omitiu o crédito da tradução. Reclamei horrores, é claro. Quanto ao Salinger, imaginem só, fomos espoliar logo o mais ferrenho defensor dos direitos autorais. Eu simplesmente li o conto, adorei e traduzi. E o Francis, sem maiores burocracias, encaminhou à diagramação para publicar. Naquele tempo, realmente, não havia pecado abaixo do Equador... Só mais recentemente me dei conta de que, embora anônimo, fui o primeiro brasileiro a publicar uma tradução do Salinger.

Lembro meu primeiro contato com a equipe – estelar, mas simpática e acessível. Reynaldo Jardim, mestre da diagramação que criou os revolucionários espaços em branco no Jornal do Brasil; a sofisticada Bea Feitler, na flor dos seus 21 anos, que depois iria brilhar em Nova York como chefe de arte nas revistas Harper’s Bazaar, Vanity Fair e Rolling Stone; Nahum Sirotsky, um dos primeiros diretores da Manchete; Cláudio Mello e Souza, poeta neoconcreto, recém-batizado por Nelson Rodrigues de “o remador do Ben-Hur” (o filme fora lançado naquele mesmo ano da Senhor); Luiz Lobo, um dos melhores textos de nossa imprensa; Ana Arruda, sua contrapartida feminina. Cito aqueles que frequentavam a redação e que conheci pessoalmente. Os colaboradores eram uma plêiade que fez história na cultura brasileira: Manuel Bandeira (O biquíni é casto), Drummond, Clarice Lispector, os Antônios (Callado e Maria), os Ottos (Lara Resende e Maria Carpeaux), Ferreira Gullar, Millôr Fernandes, Rubem Braga, Tom, Vinicius e por aí vai. Foi na Senhor que Jorge Amado publicou em primeira mão a novela “A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Agua”; e Guimarães Rosa o conto "Meu Tio, o Iauaretê”.

O aspecto visual da revista marcou época, criado com ousadia por artistas plásticos como Carlos Scliar, Darel e Glauco Rodrigues, pelos cartunistas Claudius e Jaguar e por fotógrafos como Armando Rozario, Flávio Damm e Fulvio Roiter.

Eu estava no Rio em 1960 quando Jorge Amado organizou o Festival do Escritor. Jean-Paul Sartre lançou o livro Furacão sobre Cuba e passei horas agradáveis na fila quilométrica dos autógrafos em companhia dos novos amigos da Senhor. Um ingênuo perguntou a Sartre quando ele escreveria sobre o Brasil. “Façam primeiro sua revolução” – disparou o escritor. O Festival Sartre & Simone no Brasil durou mais de dois meses. Meu professor de filosofia em Curitiba, Fausto Castilho, conseguiu convencer Sartre – que proclamara em 1955 “Não pode haver mais filósofos neste momento” – a falar especificamente sobre filosofia na famosa Conferência de Araraquara.

Na palestra do autor de A Náusea, na Faculdade Nacional de Filosofia e Letras, no Rio, quem roubou o show foi um colaborador da Senhor (e depois da Manchete), o romancista Carlos Heitor Cony, que provocou Sartre com a pergunta: “Por que o senhor não se suicidou aos 35 anos?” Referia-se a um conceito que o escritor defendera em seus romances. Sartre fuzilou Cony com seu olhar zarolho, mas deu uma resposta ponderada e filosófica. Pouco antes de morrer, falando sobre a revista, Cony lembrou: “Eu trabalhava no Correio da Manhã, um jornal sério. Na Senhor tinha mais liberdade para escrever.  Foi uma época que me deixou muita saudade."

Não só você, Cony: a Senhor deixou saudades nas dezenas de jornalistas que passaram por suas páginas brilhantes.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Bernardo Bertolucci, o adeus do inconformista e o que a manteiga da Normandia tem a ver com isso

Bernardo Bertolucci. Foto: Divulgação
Bernardo Bertolucci morreu nesta segunda-feira, aos 77 anos, em Roma, após longa enfermidade.

Se você buscar a notícia, hoje, no Google, verá centenas de tópicos que associam o diretor italiano a um filme de 1972: O Último Tango em Paris.

Bertolucci foi muito mais do que o regente da ousada contradança existencial e sexual lubrificada por manteiga e executada por Marlon Branco e Maria Schneider. Entre outros filmes, ele dirigiu O Conformista, 1900, La Luna, o Último Imperador, que lhe deu um Oscar, Beleza Roubada, O Pequeno Buda, Os Sonhadores e sua última produção, Io e Te, de 2013.

Sobre O Ultimo Tango, Bertolucci disse, há cinco anos, em entrevista ao jornalista Rodrigo Fonseca, do Globo:

"Aquele filme foi uma tsunami na minha vida. Quando comecei a rodá-lo, acreditava estar apenas contando a história de um americano velho que se envolvia com uma garota em Paris. Do nada, fui pego pela surpresa quando ele virou um sucesso sem tamanho e me permitiu fazer projetos que vieram depois, como “1900”. Sei que até hoje fico envergonhado quando esbarro com alguém dizendo “‘Último tango...’ mudou minha vida”. Isso acontece muito. A bestialidade dele moveu as pessoas. É bom ainda descobrir como ele mobiliza. Cinema não muda um país, mas toca um indivíduo".



Bertolucci tinha razão. Ninguém assistia ao Último Tango impunemente.

Carlos Heitor Cony, por exemplo, que em 2004 escreveu para a Folha de São Paulo a crônica que se segue.

Bertolucci, Marlon Brando e Maria Schneider
nos bastidores das filmagens de O Último Tango em Paris.Divulgação


CARLOS HEITOR CONY

O último tango em Paris e a ligação errada

"Revendo meu caderno de notas, encontrei seu endereço, resolvi telefonar, alô, alô, como vai você, não venha com a desculpa de que eu errei a ligação." Não parece, mas é o início de um sambinha dos anos 50, cujo autor e intérprete não lembro. Lembro o garagista onde guardava meu carro que sempre o cantava enquanto lavava os automóveis entregues à sua guarda.

Volta e meia essa letra mais ou menos infame me vem inteirinha, sobretudo quando, sem muita coisa a fazer, fico que nem o personagem desse samba, "revendo meu caderno de notas" e outros cadernos e papéis avulsos que fui guardando pelo tempo afora.

Acontece que, às vezes, ainda como o personagem do samba, erro de ligação e entro onde não devia nem queria. Foi assim que, numa tarde dessas, encontrei alguns recortes do tempo em que escrevia sobre cinema para uma revista que não existe mais e que me mandava a Paris ou Roma para ver filmes que demoravam a chegar ao Brasil ou que nunca chegavam, e quando chegavam tinham sua exibição proibida pela censura.

Num desses recortes, pomposamente datados de Paris, encontro a pequena resenha que fiz para um filme que provocava espasmos na ocasião, havia gente que atravessava o Atlântico para ver a preciosidade que, antecipadamente sabia-se, jamais seria exibida em telas castas como as nossas daquele tempo.

O filme era "O Último Tango em Paris", que outro dia passou numa das TVs a cabo, quase anonimamente e sem fazer os estragos morais que se temia. Transcrevo a resenha, tal como foi publicada ali pelos inícios dos anos 70:

"Filme inqualificável, esse de Bertolucci, mais escândalo do que sucesso em Paris e agora em Nova York. Uma temática infanto-juvenil (a exaustão do sexo como forma de diálogo) diluída num moralismo de congregado mariano e tratada por um cineasta que domina o seu ofício, mas ainda não tem nada a dizer. Seu mérito mais ostensivo é a coragem de mostrar, a ousadia de condenar aquilo que mostra - uma ousadia de cruzado medieval que nada fica a dever à simpática cara-de-pau dos membros do Exército da Salvação. 

Bertolucci abriu as porteiras - e agora o dilúvio. Como qualquer dilúvio, fará bem à humanidade, exceto aos cineastas do chamado Terceiro Mundo, que resistem a qualquer dilúvio saneador. Marlon Brando arfa durante o filme inteiro e mostra-se desinformado em matéria de certas brincadeiras. 

Utiliza-se da celebrada manteiga da Normandia para indevidos fins, demonstrando total ignorância dos macetes que qualquer menininho do Brasil conhece desde cedo.

Maria Schneider estoura na tela como ninfômana e atriz - as duas coisas em igual medida. A favor de Bertolucci, uma façanha: Jean-Pierre Léaud, aquele canastrão embrionário e obrigatório dos filmes de Godard, aqui aparece realizado, conseguindo um papel que lhe cai sob medida e para o qual não precisou fazer esforço: o do jovem idiotizado pelo cinema. Ele tem o físico, o entusiasmo e a vida pregressa para ser ele próprio o idiota, não o da família, mas o do cinema.

A música é quase excepcional. "O tango é uma maneira de caminhar pela vida" - disse Borges. E um reparo final: Marlon Brando só deixa de arfar na cena em que Maria Schneider, depois de cortar as próprias unhas, aplica-lhe uma massagem estimulante. No fundo, um filme mais inútil do que impróprio para maiores de 18 anos, que daqui a algum tempo será exibido nos colégios de freiras e nos quartéis das Forças Armadas".

É isso aí. Um escritor profissional, como o cronista, obriga-se a escrever tanto que, embora erre muito, é impossibilitado de errar sempre. É mais ou menos como nas antigas apostas da Loteria Esportiva, em que se cravava palpites em 13 jogos, nas hipóteses de vitória, derrota ou empate. Era mais fácil fazer os 13 pontos do que errar em todos, sempre se acertava em um ou dois jogos.

Anos depois, o mesmo Marlon Brando fez furor num filme ítalo-americano em que, no papel de um poderoso chefão da Máfia, aparecia com as bochechas cheias de algodão, arfando o tempo todo por outros motivos que não os provocados pela lasciva mocinha do último tango em Paris. 

Alguns atores nacionais achavam que arfar era moda e quase todos arfavam, uns mais, outros menos, até mesmo quando faziam discursos cívicos pela reforma agrária e contra o imperialismo.

Bem, voltemos ao sambinha com que inicio esta crônica. Lembro agora o nome dele, "Joãozinho Boa-Pinta", parece coisa do Haroldo Barbosa ou do Miguel Gustavo. E tem um segmento que considero um primor na poética popular: "Não sei se ainda posso lhe chamar de meu amor, não sei se ainda tenho aquela velha intimidade...".

Remexi meus papéis avulsos, tal como o Joãozinho Boa-Pinta revia seu caderno de notas. De repente, encontrei o nome e o telefone de uma intimidade que, sem ser velha, era antiga. 

Antes que caísse em tentação e discasse aquele número, pensei melhor e fiquei sem a desculpa de que errara na ligação.


sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Carlos Heitor Cony: escritor, jornalista, pintor nas horas vagas e, agora, nome de colégio...



No alto, nota do Globo publicada hoje na coluna de Marina Caruso informa que Carlos Heitor Cony vai virar nome de escola em Cabo Frio. O secretário estadual de Educação, Wagner Victer, optou pela homenagem ao lembrar que um dos livros de Cony é ambientando na cidade.

Em "Antes, o Verão", o casal protagonista constrói um casa de frente para o mar, em Cabo Frio. Tempos depois, a casa é destruída pelo vento e invadida pela areia. Entra areia também no casamento e na felicidade do par.

O livro foi lançado em 1964 e adaptado para o cinema em 1968.

Com Norma Bengell e Jardel Filho (foto) à frente do elenco, o filme foi praticamente ignorado por quase 50 anos até que, em 2015, foi exibido na Cinemateca do MAM. A redescoberta levou à restauração de um cópia que foi exibida em recentes mostras em São Paulo e Ouro Preto.
Cony foi escritor, jornalista e até pintor (arte que revelava apenas aos amigos). Agora, é, além disso, o Colégio Carlos Heitor Cony. 



sexta-feira, 16 de março de 2018

"Quase Memória" nas telas...

O cartaz do  filme, reproduzido do site Adoro Cinema

O filme Quase Memória, do diretor Ruy Guerra, baseado no best-seller homônimo de Carlos Heitor Cony, chega aos cinemas no dia 19 de abril. No elenco, Tony Ramos, Mariana Ximenes e Charles Fricks.

A demora - o longa ficou pronto em 2015, quando foi premiado no Festival do Rio - se explica pela dificuldade que os filmes brasileiros têm para ultrapassar a barreira da distribuição e chegar ao circuito de cinemas.

O escritor e jornalista, que trabalhou durante quase três décadas na Manchete, lançou o livro em 1995. O quase-romance, como define o subtítulo do livro, começa em um cenário que era quase uma "filial" da Bloch: o Novo Mundo, a menos de 100 metros da sede da editora, logo ali na Rua do Russell. O bar e o restaurante do hotel eram uma espécie de entreposto, às vezes etílico, de muitos jornalistas da empresa ao fim do trabalho.

"O dia: 28 de novembro de 1995. A hora: aproximadamente vinte, talvez quinze para uma da tarde. O local; a recepção do Hotel Novo Mundo, aqui ao lado, no Flamengo. 
Acabara de almoçar com minha secretária e alguns amigos, descêramos a escada em curva que leva do restaurante ao hall da recepção. Pelo menos uma ou duas vezes por semana cumpro esse itinerário e, pelo que me lembre, nada de especial me acontece nessa hora e nesse lugar. É, em todos os sentidos, uma passagem. 
Não cheguei a ouvir meu nome. Foi a secretária que me avisou: um dos porteiros, de cabelos brancos, óculos de aros grossos, queria falar comigo. E sabia meu nome - eu que nunca  fora hóspede do hotel, apenas um frequentador mais ou menos regular do restaurante que é aberto a todos. 
Aproximei-me do balcão. duvidando que realmente  me tivessem chamado. Ainda mais pelo nome; não haveria uma hipótese passável para que soubessem meu nome. 
- Sim. 
O porteiro tirou os óculos, abriu uma gaveta embaixo do balcão e de lá retirou o embrulho, que parecia um envelope médio, gordo, amarrado por barbante ordinário" 

E assim parte Quase Memória que, segundo Ruy Castro, autor da apresentação na contracapa da primeira edição, é o Amarcord particular de Cony.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Do Jornalistas & Cia: Ex-repórter da Manchete recorda "confronto" entre Justino Martins e Cony


UM DUELO DE TITÃS 

por José Maria dos Santos (para o Jornalistas & Cia) (*)

A recente despedida de Carlos Heitor Cony me fez vir à memória um divertido confronto entre ele e
Justino Martins, do qual fui privilegiado espectador.

Os fatos se deram na redação da revista Manchete, no sexto andar do célebre edifício do Russel, no Rio. Foi, salvo engano, por volta de 1974. Cony era editor e Justino, mítico diretor de Redação. De minha parte, era repórter da sucursal paulista, que lá estava para acompanhar o fechamento de uma reportagem sobre o Trópico de Capricórnio. Resumo em duas palavras: eu e Vic Parisi, fotógrafo, havíamos percorrido o traçado do trópico desde sua entrada no Brasil, numa vila de pescadores em Ubatuba (SP), até a localidade de Coronel Sapucaia, na fronteira com o Paraguai, para mostrar o que havia em sua volta. Era algo para 12 ou 16 páginas, não me recordo, e, no caso de extensas matérias desse tipo, o repórter ia ao Rio a fim de subsidiar a edição com esclarecimentos a dúvidas de momento.

Justino, um indiaço, como dizem no Rio Grande dos gaúchos típicos do campo, gritou-me da sua mesa luminosa na qual examinava as fotografias a serem escolhidas. [NdaR: essa mesa formava uma imensa letra L, portanto, à altura de uma revista que privilegiava a paginação e imagens de bom gosto. Como ficou constatado posteriormente, estava pensando num título.]

– Ô paulista! Para que serve o Trópico de Capricórnio? Eu gazeteei a aula de Geografia no dia desse assunto.

Eu estava sentado junto à mesa de Cony, que era responsável pelo fechamento. Ele fez um sinal,
apontando na direção de Justino, como se dissesse: vai lá. Era uma espécie de sinal verde necessário, pois todos os repórteres ganhavam timidez diante daquele monumento jornalístico. Travou-se o seguinte diálogo.

– Olha, Justino. Por convenção geográfica, o trópico separa a zona tórrida da zona temperada. (Atenção: parece que essa definição está absolutamente ultrapassada).

E Justino:

– Essa faixa de terra é muito rica?

E eu:

– É. Corta o interior de São Paulo, entra por campos de soja do Paraná que não acabam mais, invade o Mato Grosso, onde tem pasto e boi que também não acabam mais. De quebra, tem uma Torre de Babel pelo caminho. Japonês, italiano, holandês e suíço em São Paulo; mais japonês e russo no Paraná e índio pra caramba no Mato Grosso.

Justino, como sempre fazia, pôs-se a desenhar diligentemente a página dupla de abertura. No alto, à esquerda, reservou uma janela onde se destacaria a latitude do trópico em números vazados, com fio branco. A fotografia de fundo era um magnifico campo de soja verde-louro – no qual se distribuíam três máquinas agrícolas vermelhas cujo posicionamento tinha tal simetria que sugeria ter sido montada – recortado contra o céu azul. O título estava composto em duas linhas; a segunda, em letras garrafais.

"Entre o quente e o frio A FAIXA DO PROGRESSO"

Justino apressou-se, satisfeito, em apresentá-lo a Cony. Como se costuma dizer nessas circunstâncias, recebeu uma ducha de água fria sobre o calor do seu entusiasmo.

– Porra, Justino! Você pensa que o trópico está pintado no chão e que o sujeito pula do frio para o calor, pra lá e pra cá?

Justino foi buscar outra inspiração. O título fazia jus à sua intensa criatividade, mas não à Geografia. Curiosa e ironicamente, lembro-me do título rejeitado, mas não faço a menor ideia daquele que o substituiu.

(*) José Maria dos Santos, ex-Diários Associados, Manchete, Abril e Diário do Comércio, de São Paulo, entre outros, trabalhou na Manchete na mesma época que Carlos Heitor Cony. 

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Memória da Manchete: mais uma do Cony, ou duas



por Roberto Muggiati

Aconteceu hoje: receando uma negativa da ministra Carmen Lúcia, presidente do STF, sobre o pedido do governo para empossar a deputada Cristiane Brasil no cargo de Ministra do Trabalho, Temer resolveu esperar a nova decisão do TRF-2 e suspender, por enquanto, o recurso ao STF. Nas palavras de um auxiliar, o presidente não quer "queimar etapas".
Curioso: a expressão “queimar etapas” surgiu como jargão da esquerda brasileira nos tempos tormentosos que antecederam a deposição do Presidente Jango Goulart e o golpe militar. Segundo nossos comunistas – e socialistas em geral – a Revolução (a verdadeira, que libertaria as classes oprimidas do país) era uma espécie de escada a ser galgada degrau por degrau, com muito cuidado e atenção. “Queimar etapas” poderia botar tudo a perder.
Reprodução da obra "Retrato do Cony", de Paulo Monteiro, feita sobre foto de André Marenco
O Cony usou a expressão em outro contexto, quando varávamos a madrugada no velório de um amigo numa capela do cemitério São João Baptista. Naqueles tempos, as capelas ficavam abertas a noite inteira, fornecendo ampla companhia ao defunto – os assaltantes ainda não haviam descoberto o nicho de negócios representado pelos velórios, vulneráveis devido ao seu grau zero de segurança. A certa altura da noite, nosso grupo decidiu sair, a fim de descansar para voltar mais tarde ao enterro.
– Vamos andando, Cony?
– Vão vocês, acho que vou ficar por aqui mesmo.
– Mas que é isso, rapaz, está maluco?
E o Cony, com a maior cara de decisão tomada:
– Já que vou ter de morrer um dia, vou ficando por aqui: vou queimar etapas...
A morte sempre foi um grande motivo de piada para o nosso querido Carlos Heitor.
Outra história daquela época que o Cony gostava de contar. Certa noite, também em Botafogo, numa reunião do ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros – várias facções da esquerda se engalfinhavam num debate sanguinolento. Cony vê um senhorzinho de aparência pacata ao seu lado comentar como que para si mesmo: “Não sei, está tudo muito confuso. Temo que não dê certo...”