quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Sempre teremos Casablanca

Lançada há 75 anos, a love story de Bogart & Bergman
Persiste como um dos maiores sucessos cult do cinema 


A sequência final de Casablanca foi filmada em um galpão da Warner, em Burbank, Califórnia 
Por Roberto Muggiati


A história de amor do século entre Rick (Humphrey Bogart) e Ilsa (Ingrid Berman) pode ser resumida num tweet: “Paris: invasão alemã separa amantes. Ela casa com herói da Resistência. Casablanca: mocinho faz amada fugir com marido por um mundo melhor.”

O filme era para ser mais uma produção rotineira da Warner. Baseou-se numa peça de teatro não encenada, Everybody Meets at Rick’s. O texto passou por muitas mãos e modificações. Casablanca foi rodado em apenas 71 dias, de 25 de maio a 3 de agosto de 1942, num galpão de Hollywood, sem nenhum ar de Paris ou do Marrocos. As filmagens começaram com apenas metade do roteiro pronta. Logo depois, as falas e marcações eram escritas às pressas por Howard Koch e pelos irmãos gêmeos Jules e Philip Epstein na véspera da filmagem. Ingrid Bergman não sabia quem devia amar: Rick ou Laszlo? Há quem defenda que toda essa confusão foi uma das causas principais do sucesso de Casablanca.

O filme é o campeão das frases de efeito, de humor cortante, um tipo de cinismo gerado pelo pathos da guerra. Nas conversas entre o capitão Renault e Rick, por exemplo: “Que diabos o trouxeram a Casablanca?/Minha saúde. Vim por causa das águas./Águas, que águas? Estamos no deserto!/Fui mal informado.” Uma mulher pergunta a Renault que tipo de homem é Rick: “Rick é o tipo de homem que... se eu fosse uma mulher, e eu não estivesse disponível, eu me apaixonaria por Rick.” E o fecho do filme, quando os dois, acumpliciados na vitória do Bem, se afastam em meio à neblina: “Isto poderia ser o início de uma bela amizade.”

O choque de Rick ao reencontrar Ilsa no seu café: “De todas as biroscas em todas as cidades do mundo, ela tem de entrar logo na minha!” Evocando a invasão de Paris: “Lembro cada detalhe: os nazistas vestiam cinza, você azul.” Convencendo-a do acerto do seu sacrifício: “Ilsa, não sou bom em matéria de nobreza, mas não é muito difícil perceber que os problemas de três pessoinhas não valem coisa alguma neste mundo maluco.” E quando Ilsa, perplexa, pergunta: “E nós?” Rick consola: “Sempre teremos Paris.”

O piano de Sam, do Rick's Café, foi...

...leiloado em 2014. 

O toque musical é perfeito: As Time Goes By, composto em 1931 por Herman Hupfeld, pianista de uma taverna suburbana de New Jersey. A letra sublinha os sentimentos do filme: “É a mesma velha história/A luta por amor e glória/Um caso de vida e morte./O mundo acolherá os amantes/Enquanto o tempo passa...” As Time Goes By sublinha o amor de Rick e Ilsa em Paris e seu reencontro em Casablanca. O piano de Sam em Casablanca foi leiloado em 2014 por 3,4 milhões de dólares na Bonhams de Nova York.

O elenco era uma verdadeira “legião estrangeira”: a sueca Ingrid Bergman; os ingleses Claude Rains e Sidney Greenstreet; os austríacos Paul Henreid (nascido na Trieste do Império Austro-Húngaro) e Peter Lorre (celebrizou-se como O Vampiro de Düsseldorf); o alemão Conrad Veidt (atuou em O gabinete do Dr. Caligari), que fugiu dos nazistas, mas Hollywood engessou em papeis de oficiais nazistas, como em Casablanca. E tem, é claro, o diretor Michael Curtiz, húngaro que se mudou para Hollywood ainda no cinema mudo. Durão, foi temido e odiado por todo o elenco, exceto por Ingrid, que Curtiz tratava como uma duquesa.

Bogart era cinco centímetros mais baixo do que Ingrid, o que o obrigou a pisar sobre blocos de madeira e sentar em almofadas altas para compensar a diferença. O filme todo foi rodado num galpão da Warner em Burbank. A cena final usou um avião de compensado em miniatura, imitando um Loockheed Electra Junior, preparado para o voo por extras anões, para manter a proporção. A produção exagerou no nevoeiro – criou um improvável fog londrino no Marrocos – a fim de disfarçar a bizarra montagem. E a capa de chuva emblemática de Bogie – façam-me um favor, em pleno deserto do Saara? Todos esses absurdos funcionaram às mil maravilhas, Havia finais alternativos A e B, até os atores principais só ficavam sabendo qual deles seria usado poucos dias antes da filmagem. Tentativas de corrigir as cenas finais se tornaram impossíveis depois que Ingrid Bergman cortou os cabelos bem curtos, para interpretar Maria em Por quem os sinos dobram? A filmagem de Casablanca foi uma comédia de erros em que tudo se encaixou à perfeição para criar uma obra-prima.

A estreia em Nova York em 26 de novembro de 1942 garantiu que o filme concorresse aos Oscars do ano. Com oito indicações, ganhou os prêmios de melhor filme, melhor direção e melhor roteiro.  Comunicólogos e semiólogos tentaram decifrar o Efeito Casablanca nas últimas décadas. Num livro de 402 páginas 1992, Round Up The Usual Suspects/The Making of Casablanca – Bogart, Bergman and World War Two II, Aljean Hametz revela todos os bastidores das filmagens. (O título evoca um dos chavões da hipócrita polícia francesa toda vez que havia uma agressão contra os alemães:

“Detenham os suspeitos de sempre.” Na verdade, nunca houve tropas nazistas uniformizadas em Casablanca em toda a Segunda Guerra, o que é talvez o maior disparate, dentre os inúmeros da história.) Até um livro de receitas de comes e bebes foi publicado, The Casablanca Cookbook.
Esta ano saiu o livro de Noah Isenberg, We’ll Always Have Casablanca, que analisa o impacto e a longevidade do filme. Umberto Eco sempre achou o Casablanca medíocre, uma história em quadrinhos, uma colcha de retalhos, com baixa credibilidade psicológica e descontínuo em seus efeitos dramáticos.” Mas Eco admite também: “Casablanca não é apenas um filme. É muitos filmes, uma antologia. Quando todos os arquétipos explodem desavergonhadamente, atingimos profundezas homéricas. Dois clichês nos fazem rir. Uma centena de clichês nos comove, pois sentimos que os clichês estão conversando entre si e celebrando uma reunião.”

Intelectualismos à parte, Casablanca é um filme que fala basicamente à emoção. Cultuado por sucessivas gerações ao longo de 75 anos, deverá continuar, por muito tempo, contando “a mesma velha história da luta por amor e glória.” Por tudo isso, depois de três quartos de séculos, se tornou também imune a remakes e continuações — um milagre impossível de se repetir.

  Remakes, sequels & prequels  

Rick e Ilsa deixam o heroico Victor Laszlo a ver aviões e têm o seu happy end. Casam, dão sua contribuição ao baby boom e se tornam mais uma família afluente na Subúrbia da Sociedade de Consumo. Ou então, numa virada de enredo digna do nosso tempo, Rick e o capitão Renault se aprofundam (literalmente) na sua “bela amizade” e saem pelo mundo afora em busca de destinos gay-friendly. Laszlo larga a política e se torna gerente de uma rede de hotéis, vivendo pra lá de Marrakech num harém de dançarinas do ventre. Dooley Wilson — que canta As Time Goes By no filme — faz sucesso com um clube de jazz na rive gauche de Paris, o Sam’s Café Américain.

São variantes de possíveis continuações de Casablanca que, felizmente nunca foram filmadas.

Existe ainda, só para um clube fechado de jornalistas cariocas, a bem humorada adulteração do final do filme feita por João Luiz de Albuquerque, com Rick e Ilsa juntos num beijo de happy end. Esta versão politicamente incorreta é precedida por um jornal do Canal 100 que mostra o Brasil campeão da Copa de 50 no Maracanã.

Não é de hoje que Hollywood tenta repetir o que deu certo — e nem sempre se dá bem. O romance O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, publicado em 1925, já no ano seguinte ganhava uma versão no cinema ainda mudo, da qual só restaram poucos minutos – críticos pedantes dizem que é a melhor de todas. Refilmado em p&b em 1949 (com Alan Ladd), Gatsby conquistaria as plateias na versão com Robert Redford e Mia Farrow, roteirizada por Coppola – uma visão anos 70 dos anos 20. E tem ainda a versão de Baz Luhrmann em 2013 com Leonardo DiCaprio. Para mim, que traduzi a versão recuperada de O Grande Gatsby – apesar de incluir música eletrônica, hip-hop e rock numa trilha anacrônica – é de todas a mais fiel ao texto de Fitzgerald. No drama marítimo O grande motim, a versão de 1935 (com Clark Gable e Charles Laughton) ganha longe das de 1962 (Marlon Brando e Trevor Howard) e 1984 (Mel Gibson e Anthony Hopkins). Há remakes que jamais deveriam ter sido feitos: o de O fio da navalha (1946, com Tyrone Power), refilmado em 1984 com Bill Murray; e A carga da brigada ligeira (1936, dirigido por Michael Curtiz, de Casablanca, com Erroll Flynn), refeito em 1968 com David Hemmings. O personagem mais vezes levado à tela é Sherlock Holmes, interpretado por vários atores desde a primeira versão, em 1922, com John Barrymore. O detetive Charlie Chan, que também estreou no cinema mudo, aparece em dezenas de filmes. Ironicamente, seus maiores intérpretes foram falsos chineses: o sueco Warner Oland e o americano (de origem escocesa) Sidney Toler. O exemplo mais bem sucedido de sequels foi a saga O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola (1972, 74, 90). Detalhe precioso: o bebê de Al Pacino batizado no final do Chefão 1 é a filha recém-nascida de Francis Coppolla, Sofia, que atua como ninfeta no Chefão 3, já com 18 anos, e se tornaria expressiva cineasta depois. O charme macabro de Norman Bates gerou as sequências Psicose II e Psicose III e a prequel Psicose IV – O início, todas estreladas por Anthony Perkins, que dirigiu Psicose III. Desperdício total foi Gus Van Sant copiar em cores, em 1998, quadro por quadro, o Psicose original de Hitchcock, de 1960. Já Alfred Hitchcock e a filmagem de Psicose, com Scarlett Johansson fazendo a bela do chuveiro e Anthony Hopkins (não Perkins!) como o Mestre do Suspense, mostra a grande cartada do velho Hitch ao bancar sozinho, com dinheiro do bolso, a filmagem de um dos maiores sucessos de bilheteria, rejeitado por todas as grandes produtoras. Hopkins, a propósito, brilhou nas sequels de O silêncio dos inocentes — Hannibal e O Dragão Vermelho — mas não aparece na prequel, Hannibal – A Origem do Mal.

Existe coisa pior no cinema do que remakes, sequels e prequels? Existe, sim. Até um musical inexpressivo fizeram de Casablanca em 2002. Mas vamos torcer para que a história de amor de Rick e Ilsa continue fechada eternamente entre as quatro paredes do encantado café marroquino.                                                                                                             

A primeira Casablanca 
a gente nunca esquece!

Quem viu Casablanca, certamente viu o filme várias vezes. E lembra até hoje quando o viu pela primeira vez. Minha primeira sessão de Casablanca teve a ver, de certo modo, com a guerra.

Eu fazia o serviço militar no CPOR de Curitiba no verão de 1957. Numa sexta-feira programou-se uma marcha noturna de 30 quilômetros com mochila equipada de 36 quilos no lombo.

Uma verdadeira tortura.

Valendo-me de uma unha encravada, provocada por aqueles elegantes sapatos pretos de bico fino, consegui dispensa médica.

Cine Luz, Curitiba
Resolvi pegar a sessão das oito no Cine Luz, no centro da cidade. Quando ia saindo de casa às sete e meia, no alto da Alameda Carlos de Carvalho – o céu ainda claro no verão curitibano – ouço aquele tropel cadenciado subindo a rua. Era a marcha dos meus colegas da arma de Engenharia, a caminho das ladeiras do Bigorrilho e dos descampados da Campina do Siqueira e do Parque Barigui. Me escondi por trás da sebe de hortênsias que cercava o muro da casa dos meus pais. Passado o perigo, peguei o ônibus rumo ao centro.

Não devia ser a primeira vez que passava Casablanca em Curitiba; apenas 14 anos nos separavam do lançamento do filme – e da Segunda Guerra. O prazer estético de ver pela primeira vez Casablanca – a maior história de amor em tempo de guerra – foi intensificado mil vezes pelo senso do interdito e da transgressão de ter escapado ao castigo da marcha forçada.

4 comentários:

J.A.Barros disse...

Atualmente, só os contemporâneos do filme "Casablanca ", falam e lembram desse famoso filme. A geração atual nunca viu "Casablanca " e a impressão que deixa é de não mostrar interesse em ver o filme. A TV se transmitiu alguma vez , também não mostrou interesse em repetir o filme nas suas telinhas.

Cléo disse...

Filme maravilhoso. Aos meus filhos costumo dizer que cultura e conhecimento não tem idade. A ignorância, sim, se ele escolherem desconhecer literatura, cinema, música. Quem não saber o que foi feito antes não tem capacidade de fazer nada novo por mais criativo que seja.

Hoffman disse...

Não sei, J.A Barros, vejo salas lotadas de jovens em festivais de filmes, em retrospectivas de diretores dos anos 60 e 70, de ciclos de filmes antigos de vários paises. Acho que a nova geração não vê apenas homem aranhas e mulher maravilha.

J.A.Barros disse...

É claro que muitos jovens se interessam por cinema e por se interessarem procuram pesquisar e assistir – quando há oportunidade – os filmes das décadas de 60 e 70, até por razões de estudo do cinema brasileiro. Mas, veja bem, esses jovens não constituem maioria e muitos fazem faculdade de cinema e de fotografia. Mas, emiti essa opinião é porque percebi há muito que jovens, na sua maioria, alem de não manifestar interesse na história deste país desconhecem até nomes de políticos famosos de Getúlio Vargas a Carlos Lacerda, que não muito longe no tempo eram os notáveis assuntos da mídia. Os jornais estão encalhando nas bancas, e uma das razões é que jovem não compra jornal.