quinta-feira, 26 de março de 2015

Celso Athayde: lorde da rua...



por José Esmeraldo Gonçalves (para a Contigo!) (*)

Para muitos cariocas, o Viaduto Prefeito Negrão de Lima, em Madureira, no Rio de Janeiro, é apenas mais um entre tantos que se espalham pela cidade. Mas para Celso Athayde, 52, fundador da Cufa (Central Única das Favelas), é a ponte que liga literalmente dois tempos da sua vida. Aquela laje de concreto foi o seu teto. Ali ele morou durante parte da infância com a mãe, Marina Soares, e o irmão mais velho, Paulo Athayde, ambos já falecidos. 

Hoje, o viaduto, um dos maiores do Rio, com mais de 500 metros de extensão, abriga quadra de basquete, pista de skate, espaço para oficinas de informática, técnicas audiovisuais, palestras, shows, festas, além de parte da estrutura administrativa da Cufa, que tem outra sede na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio, e representações em comunidades de vários estados.

Foi nesse local, com mais de dois mil metros quadrados de área, reformado e reinaugurado no mês passado – agora com o nome de Espaço Cultural Marina Soares Athayde - que o empreendedor social recebeu a Contigo!. 

Celso acabava de voltar de uma visita aos Estados Unidos e Inglaterra, onde mantivera encontros com Chaim Litevski, 60, diretor do documentário Cidadão Boilesen, hoje chefe do departamento de TV da Organização das Nações Unidas, e com o embaixador Antonio Patriota, 60, atual representante do Brasil na ONU. A viagem fez parte de um projeto para a abertura de representações da Cufa em Nova York e Londres, ampliando o diálogo que a instituição já mantém com organizações populares de vários países.

Celso é autodidata. Autor dos livros “Falcão - Mulheres do Tráfico”, “Falcão - Meninos do Tráfico”, em parceria com o rapper MV Bill (Alex Pereira Barbosa), 41, e “Cabeça de Porco”, em coautoria com o sociólogo Luiz Eduardo Soares, 61, ele lançou, no ano passado, com Renato Meireles, “Um país chamado favela”, resultado da pesquisa Radiografia das Favelas Brasileiras feita pelo Instituto Data Favela, criado por Athayde e Meirelles. A obra é apresentada pelo amigo Luciano Huck, 44. Celso também dirigiu o documentário “Falcão, meninos do tráfico”, em dupla com MV Bill. 

Casado com a Marilza Pereira Athayde, 48, - que foi uma das produtoras do documentário sobre os meninos do tráfico, pai de Celso, 21, estudante de engenharia, e Thales, 19, aluno da London School of Economics (and Political Science), o ex-menino de rua fala com entusiasmo ao mostrar as instalações onde grupos de adolescentes jogam basquete e têm aulas de capoeira nos vãos sob o viaduto. Ele recorda com naturalidade os tempos difíceis que passou no mesmo lugar onde lidera iniciativas sociais que procuram abrir melhores perspectivas de aprendizado e de trabalho para milhares de moradores das mil e duzentas favelas que existem no Rio de Janeiro. Uma daquelas pilastras foi a “parede” da sua “casa”. “Não dá para esquecer”, diz ele, enquanto percorre as instalações. Quase não se ouve o barulho do trânsito pesado que passa sobre o viaduto. Em todos os espaços há isolamento acústico e impermeabilização. Na quadra de basquete de rua – que é o local para shows e festas – há aparelhos de ar condicionado. Quando ligados, cortinas fecham as laterais dos vãos do viaduto, onde a temperatura costuma ser alta. Não deixa de ser irônico, como lembra Celso. “Eu, minha mãe e meu irmão dormíamos em um canto que ventava. Aqui, a gente podia acordar com uma facada no peito porque era um espaço disputado, um corredor onde tinha um ventinho. E aí? O cara morre por causa daquele vento. O meu sonho aqui era ver o dia amanhecer”, conta.

O “corredor com ventinho” que a  criança daquela época, fim da década de 1960 via como “privilégio” foi apenas um dos capítulos na vida itinerante da família. Celso nasceu na comunidade do Cabral, em Nilópolis, na Baixada Fluminense. O pai, Altamiro Athayde, já falecido, era manobrista e lavador de carros. A mãe era doméstica e lavava roupas para fora. Ambos alcoólatras. “Ele era muito agressivo e minha mãe não aguentou mais. Eu com seis e meu irmão com sete anos saímos junto com ela. Meu pai batia muito na gente. Fomos inicialmente para a casa de uma tia. Mas era só estresse, não deu certo”, conta.  Sem opção, a família foi morar na rua, sob uma marquise no bairro de Marechal Hermes. “A gente roubava muito lá. Minha mãe chorava, chorava. Passou a chorar menos, passou a não chorar mais, passou a aceitar. A miséria é f.... A miséria vai corroendo tua dignidade, cara. Meu irmão era um ano mais velho, era mais forte.  A gente via a polícia passar correndo atrás dele, pegava, batia, levava pra delegacia e soltava novamente. Ele foi assassinado, mais tarde, ainda adolescente, em uma favela aqui perto”. Talvez essa dura vivência tenha dado a Celso Athayde um jogo de cintura para circular entre a favela e o asfalto. “Quando você integra as pessoas, consegue fazer com que as duas partes aprendam. Quando eu morava na rua, conheci um dia um comerciante que me ensinou uma coisa muito importante: comer com garfo e faca. Era um cara que falava com dificuldade, tinha um buraco no pescoço, mas dizia a mim e aos outros meninos que ia fazer da gente “lordes da rua”, ensinar a falar, se comportar. Ele contava histórias e aquilo ia me mostrando que o mundo ia além do que eu conhecia”. Athayde diz que, de certa forma, levava o que ele chama de vantagem sobre a maioria dos moradores de rua. “Apesar de viver ali, eu não tinha nascido na rua. Meu sonho era voltar para um barraco. Pior do que você morar na rua é nascer na rua. Tua referência passa a ser a própria rua e só”.

É por conhecer essa dramática realidade que ele questiona, por exemplo, o apelo de algumas campanhas dirigidas a moradores de rua que consomem crack e cola. “O cara cheira crack porque, se ele tiver dor de dente, não vai ao dentista, se tiver depressão não vai ao psicólogo, se sentir frio não vai pra casa. Se ele tem uma infeção urinária, vai fazer o que? Vai ao médico? Se tiver medo, o crack resolve. Tudo a cola resolvia. Na verdade, o crack e a cola são o pai e a mãe de quem mora na rua”, argumenta. Após o assassinato do irmão nas proximidades do viaduto, Athayde foi com a mãe para um abrigo público, então instalado no Pavilhão de São Cristóvão. 

Na época, as famílias levadas para o abrigo foram inscritas em um programa de habitação popular. Assim conseguiram uma casa na Favela do Sapo, em Senador Camará, na Zona Oeste do Rio. “Eu já adolescente, fui parar na favela onde estava se firmando a Falange Vermelha, que viria a ser o Comando Vermelho. O chefe era o falecido Rogério Lemgruber, um dos fundadores da organização. Fui trabalhar na boca-de-fumo. Eu queria me enturmar, ter aquela relação. Ser amigo do traficante, significava um certo poder. Hoje eu acho isso uma grande bobagem, mas quando moleque era até um forma de me proteger dos adultos”. Segundo Athayde, Lemgruber dizia que era comunista. “Depois, descobri que ele não era comunista, era botafoguense e admirador do João Saldanha. “Acho que apenas reproduzia aquele pensamento”, acrescenta, lembrando que o chefão era temido e reverenciado. “Um dia, me deu um livro. Eu nunca fui à escola, hoje consigo ler, mas ainda tenho dificuldade de acompanhar legendas de filmes muito rápidas. Lemgruber apareceu com “Guerra e Paz”, do Tolstoi, e disse que se eu e mais dois moleques não conseguíssemos ler o livro todinho, tomaríamos tiro na mão. Deu um prazo de três meses e marcou uma arguição. Tentava ler o livro, que tenho guardado até hoje, e não conseguia. Passei a apelar para revistinha do Batman e Robin para ver se aprendia. Era uma correria. Acabou que não houve a arguição e aquilo passou. Ele também obrigava a gente a ouvir Caetano Veloso, Geraldo Vandré e Chico Buarque, para ele, os grandes revolucionários. Hoje, Caetano é meu amigo, eu conto pra ele essa história”, revela.

Celso concluiu que não tinha vocação para ser bandido e decidiu se afastar do tráfico. “Eu não queria mais trabalhar em boca-de-fumo, tinha medo de tomar tiro”, diz ele, que conseguiu deixar o tráfico sem sofrer represálias, o que é comum, e virou camelô. “Rodei por Senador Camará, Maracanã e vim parar em Madureira. Um dia, o pessoal queria fazer uma festa de Cosme e Damião, não tinha lugar, e me lembrei do viaduto. Foi meu reencontro com o lugar onde eu tinha morado parte da minha vida. Era 1994. A festa foi um sucesso. Depois, passamos a fazer aqui um baile de Charme, vertente do soul e funk em voga no Rio. Ganhava um dinheiro ali. Deixei aquilo e fui fazer rap, que tinha um discurso mais antenado com o que eu queria fazer. Passei a me engajar”.  Largou um emprego de vigilante e ligou-se à música, passou a vender CDs e chegou a montar uma loja de discos, que faliu. Não desistiu e, nos anos seguintes, tornou-se promotor de eventos, produtor de shows, empresariou o grupo Racionais MC e lançou MV Bill e a rapper e apresentadora Gisele Gomes de Souza , a Nega Gizza, 30. 

Mas a inquietação o levou a repensar a rota. Athayde queria, como diz sempre, fazer com que a favela fosse protagonista cultural e econômica e não mera coadjuvante. “Eu montei na época um fórum, que não tinha esse nome, mas era um fórum. Arrumei uma sala de um curso e começamos  a fazer reuniões para falar sobre qualquer coisa. Enchia de gente. Caetano foi lá falar sobre tropicalismo, discutia-se de homossexualismo a energia nuclear. As pessoas faziam perguntas. Eu comecei a perceber que era o ignorante da turma, e que a favela tinha algum conteúdo”, conta. O passo seguinte foi promover um curso de audiovisual na Cidade de Deus, com a participação do diretor Cacá Diegues, 74. “Até então, a gente achava que só existia diretor e ator. Com a aula, aprendemos que cinema tem produção, pesquisa, montagem, trilha sonora, roteiro etc”, descreve ele que, após o curso, começou a filmar os shows do MV Bill no país inteiro. “A gente visitava muitas comunidades e comecei a falar com os moleques de cada lugar. Daí, surgiu o filme “Falcão, os meninos do tráfico”, que fez sucesso em mais de 30 países, embora, no Brasil, eu ainda responda a um processo por  “apologia ao tráfico” e tenha recebido ameaças de morte”, completa.

Embora permaneça ligado à Cufa, Athayde não mais dirige o dia a dia da instituição que atualmente é presidida pelo ativista social Francisco José Pereira, o Preto Zezé, 37. Há um ano, ele resolveu dar um passo maior e fundou a FHolding (Favela Holding), que, além de mantenedora da Cufa, coordena empresas com atuação comunitária. “É a primeira holding social do mundo. Pode ver no google. Existem empresas sociais, mas não uma holding”, diz. Segundo Athayde, já foram formadas 21 SPE (Sociedades de Propósito Específico) em parcerias com grandes grupos brasileiros e multinacionais, sempre com o objetivo de desenvolver setores da favela e qualificar seus moradores. Com a Conspiração Filmes, por exemplo, foi criada a Confusão, que atua na área de conteúdo para cinema, televisão e novas mídias; com a P&G e a Tendência, surgiu a Favela Distribuições, que implanta pontos de venda e distribuição de produtos; a Cadeia Produtiva é uma sociedade com a empresa italiana fabricantes de móveis, Doimo, para implantação de fábricas em comunidades e presídios; outra subsidiária é a Favela Vai Voando, que vende passagens aéreas a preços acessíveis. Já são mais de 100 pontos de venda em favelas. “Há vários outros parceiros, mas todas as empresas obedecem  à mesma lógica: a maioria dos funcionários é da favela. Sou um executivo social e quero ganhar dinheiro desenvolvendo riquezas nesses territórios. Meu trabalho é tornar protagonistas as pessoas desses territórios. A Cufa, por exemplo, não tem voluntários. Todo mundo aqui tem carteira assinada. Se não, eu teria só o discurso e estaria reproduzindo aquilo que estou criticando”, explica. O projeto que ele mais acalenta, no momento, é um shopping popular que uma das empresas da holding vai lançar em parceria com a rede mineira Uai. “Ficará no Complexo do Alemão. Os lojistas serão sócios do empreendimento e obrigatoriamente moradores da favela. E só vamos empregar morador da favela. O objetivo é que a grande parte da riqueza gerada circule na própria comunidade. Se não fosse assim, eu estaria vendendo a favela”, avalia.

O executivo social, como se define, é também um workaholic social. Embora tanto a mulher, Marilza, quanto os filhos participem das atividades da Cufa e das empresas, ele confessa que a família cobra sua presença. “Gosto do que faço. Mas realmente me sobra pouco tempo para o lazer. Tenho que apagar muito incêndio, pagar as minhas contas, os funcionários, um correria permanente. Fui agora no carnaval para a Bahia, e acabei trabalhando, de certa forma. Como criei recentemente a Liga dos Blocos Afros do Rio de Janeiro, fui ver como é feito para aplicar aqui. Às vezes vou para Angra dos Reis, onde temos um apartamento alugado. Em Nova York, tive um reunião e almocei no MoMa. Não dá para dizer que não me diverti trabalhando”.

(*) Com extras especiais para o blog

9 comentários:

J.A.Barros disse...

Acho isso fantástico e maravilhoso que vem comprovar que quando o homem pretende realizar qualquer ideia comunitária ou não ele consegue. Até dinheiro para subvencionar e financiar essa obra.

Alexandre Raposo disse...

Bela reportagem sobre um ser humano exemplar. Lendo os textos de velhos companheiros e comparando-os com o que vemos na imprensa atual, vejo que grande escola de jornalismo foi a Bloch Editores.

J.A.Barros disse...

O autor dessa reportagem – sem desmerecer a Bloch Editores – já foi trabalhar na Bloch com alguns anos de jornalismo em outras empresas. É e sempre foi um jornalista formado no dia-a-dia das pesquisas e entrevistas nas ruas e em Palácios de cristal. José Esmeraldo nasceu jornalista.

Alexandre Raposo disse...

Você tem toda razão, Barros. Na escolinha da Bloch, o Esmeraldo já entrou professor.

Esmeraldo disse...

Caros Barros e Alexandre, faço como o Vicente Matheus que sempre que era chamado de competente dizia "agradeço mas não mereço". Vai ver tinha razão. Mas falando sério, a Bloch foi a nossa escola mesmo. E não podia ser diferente. Nós, os jovens repórteres da época trabalhávamos com João Máximo, Marcos de Castro, Irineu Guimarães, Renato Sergio, Ney Bianchi, Cony, Muggiati, Joel Silveira, Justino Martins, Raymundo Magalhães, Ruy Castro, e muitos outros. E escola foi esse inesquecível dream team do texto. No caso dessa matéria, o personagem ajudou.

R. Belisário disse...

Celso Athayde é um exemplo e uma prova de que dá para fazer um trabalho de apoio às pessoas sem paternalismo e sem exploração.

Ebert disse...

Celso Atahyde está de parabéns pelo trabalho social e de empreendedorismo popular que faz

Daniel disse...

Manero

Wedner disse...

Muito legal essa história